Nunca foi fácil ser a filha Dela. De alguma maneira sabia que teria de viver com isso cada minuto da minha vida. Há coisas das quais podemos fugir, como carros amarelos, filhos antes dos 30 e cãezinhos pequenos e irritantes. Mas não se pode fugir a uma mãe. Não se a mãe for Ela.
Ao longo da minha existência sempre esteve lá Ela: Frases sem sentido, sensação de falhanço constante, angústia por não ser o que se esperava de mim…Ela…A minha mãe. Aquela que supostamente me devia apoiar em todos os momentos da minha vida esteve sempre lá: com palavras de desapontamento e de pena…Por eu não ser ela. Acho que era por isso…
Quando engravidei aos 25 não era porque queria ter um filho, mas também não foi por descuido. Na verdade, como já disse antes, ter filhos antes dos 30 é uma das coisas às quais se pode fugir. Eu só desejei ter um filho do Marco porque Ela não o suportava, como não suportava qualquer pessoa que fosse capaz de me amar como Ela não era, como não suportava o meu pai…Eu lembro-me…
E quando a minha filha nasceu o que eu gostava de ter feito era ter pegado nela e ter ido para bem longe, só com ela, sem o Marco porque na verdade nunca me pareceu o namorado ideal, só eu e ela. Longe de tudo. Longe Dela…
Quando eu nasci Ela já tinha 30 anos. Tinha uma carreira estável como professora universitária porque era muito boa no que fazia. Era implacável. Como seria ao longo de toda a sua vida. Eu nasci e não fui desejada por Ela. E por isso fui muito amada pelo meu pai, e até certo ponto, odiada por Ela.
A parte difícil da minha vida começou no dia em que o meu pai morreu. O meu pai era a melhor pessoa que eu conhecia. O meu pai acreditava na bondade das pessoas e, portanto, também acreditava na bondade Dela. Acho até que a amava, mesmo que ela lhe fizesse a vida negra. A mim ela não o fazia. Enquanto ele esteve ali para me defender Ela sabia que não podia mexer comigo. Porque no momento em que Ela mexesse comigo ele veria quem Ela realmente era. Eu era a princesinha dele e ele estaria sempre ali para me defender.
Mas no dia em que ele morreu, enquanto eu chorava desalmadamente, Ela mantinha uma calma gelada. Eu tinha 12 anos e andava na escola. Ela mandou-me subir para o quarto e disse-me que parasse já de chorar e que fosse estudar…Fiquei completamente à toa, fechei-me no quarto e continuei a chorar até ao dia seguinte, sem saber muito bem como é possível ser-se tão fria…
E a partir desse dia as coisas foram piorando para mim de dia para dia: Ela sempre foi um pouco estranha para mim e mal me falava, mas a partir desse momento as coisas foram ainda piores. Ela continuava a mal me falar mas quando falava era sempre para me deitar abaixo, para me fazer sentir mal, para me subjugar e isso doía muito mais…E durante alguns anos eu fui mesmo essa menina reprimida que Ela queria criar. Chorei com medo dela, por não ser o que Ela queria que eu fosse, por Ela ter vergonha de mim…Até que, com o tempo e a idade, me fui apercebendo da mulher amarga que Ela era, que sempre foi. Quando eu tinha 22 anos Ela começou a ter problemas nos ossos. Uma doença estranha que, de ano para ano, a ia debilitando. O seu corpo passou a estar fragilizado e passava a maior parte do tempo sentada. Mas Ela continuava a ser a mesma pessoa odiosa e ressentida que sempre fora. Dentro de mim não havia qualquer amor por Ela, como não o havia nela por mim. Éramos duas estranhas. Os laços de sangue não nos uniam. Éramos dois elos de uma cadeia há muito partida, o meu pai tinha sido a única coisa que alguma vez nos aproximou.
Nunca compreendi muito bem a razão do seu ódio por mim e com o tempo deixei de tentar perceber. Fiz o que pude para crescer com aquilo que me tinha calhado em sorte e sobrevivi. Dinheiro não me faltava e tentava compensar através dos amigos o amor que me faltava. Deixei de tentar ser perfeita. Na verdade, comecei a fazer tudo para não o ser.
Um dia disse-lhe que estava grávida do Marco e que ia sair de casa e ia viver com ele. Deu uma risada fria como um iceberg e disse-me que eu nunca conseguiria sobreviver sem Ela, que eu não sabia fazer nada, que não era nada sem Ela…Mas eu sabia que não era assim. Eu tinha algum dinheiro do meu pai, que não dava para muito tempo, mas depois ia arranjar um trabalho e ia-me virar sozinha…
E fui. E durante alguns meses acho que senti o que era a felicidade. Não pensei Nela nem em todos os anos em que fui infeliz por causa Dela, procurei um trabalho e aluguei um quarto e durante algum tempo consegui manter-me assim.
Quando eu estava grávida de seis meses despediram-me. Vi-me sozinha, sem um trabalho, sem ninguém a quem recorrer…Desesperei…Fui ter com Ela e pedi-lhe ajuda. Engoli o meu orgulho e pedi-lhe ajuda…E o que é que ela fez? Disse-me que nunca mais me queria naquela casa, que eu não pertencia ali, mas que queria ficar com a minha filha…Gritei com Ela, como é que Ela podia ser assim tão fria ao ponto de me separar da minha bebé, pensei em fugir para bem longe, mas na verdade, naquela condição, não ia arranjar trabalho e não podia deixar a minha filha viver sem condições…
Foi uma decisão muito difícil. Se soubesse o que sei hoje talvez não o tivesse feito. Ou talvez sim, não sei…mas essa decisão mudou a minha vida.
Saí de lá consternada. Grávida de seis meses e sem sítio para onde ir, Ela sabia qual teria de ser a minha decisão. Mas naquele momento eu não lhe podia dar o gosto da vitória.
Chorei até a minha cabeça estar vazia de pensamentos. E foi quando aceitei voltar e ficar até a bebé nascer.
Quase não a vi naqueles 3 meses. A Célia, uma empregada velha que sempre tinha cuidado de mim, vinha ver-me todos os dias e ver se eu estava bem. Quanto a Ela, já não se mexia muito bem e passava as horas no seu cadeirão, enfiada nos livros e na sua escrita e fazia de conta que eu não estava lá. Cá dentro, eu desejava que Ela pensasse melhor e me deixasse ficar depois de a minha filha nascer. Lá no fundo sabia que não seria assim. Mas tentei ignorar esse facto, tentei não pensar em nada. Durante esse tempo eu não existi simplesmente.
Depois a bebé nasceu. Ela mandou a Célia arrumar as minhas coisas e mandou-me embora com 100 contos no bolso assim que eu estava recuperada. Sabia que eu ia passar mal, mas mesmo assim mandou-me embora. E eu fui, com a segunda perda da minha vida por culpa dela.
Olhei para a minha bebé, tão linda num fato amarelo que já tinha sido meu. Desejei guardar aquela recordação para sempre.
No dia seguinte procurei trabalho. Não foi difícil porque sempre fui uma rapariga apresentável e também porque tinha estudos. Meti-me na primeira coisa que apareceu. Fui parar a um restaurante manhoso mas que me pagava as contas.
Tentei aproximar-me da minha filha e a princípio foi um pouco difícil porque Ela não me queria lá ver, achava que eu era uma má influência para a miúda. Não queria saber como eu estava e fazia questão de que eu só estivesse com a bebé na presença Dela. Era cruel até. Mas isso não importava, desde que eu a pudesse ver e lhe pudesse tocar…
E os anos foram passando. Eu conheci um homem fantástico que quis casar comigo e dar-me uma casa. Com ele eu era realmente feliz. Um dia ele pensou que gostaria de ter filhos meus mas cá dentro havia uma angústia que não passava: Eu queria a minha filha comigo, não queria outra criança a tomar o seu lugar… Ele compreendia a minha angústia mas era tão querido que merecia ser feliz também e eu assenti. A partir do dia em que Ela soube que eu estava grávida de novo, tinha a minha filha 8 anos, proibiu-me de voltar a casa.
Sofri ainda mais. Sofri vezes sem conta. Dias e horas e minutos. Sofri muito. E um dia ganhei coragem e voltei lá sem Ela saber e pedi à Célia para falar com a minha filha. Ela desceu e quando a vi pareceu-me ver nela um semblante conhecido, carregado, frio…E quando a vi soube que ela já não era a Minha filha. Era filha Dela. A filha que ela achava que eu não podia ser.
A minha filha tinha 13 anos e disse-me que não me queria voltar a ver, que eu a envergonhava e à avó e para deixar de aparecer naquela casa.
Ela disse aquilo de uma forma tão fria e insensível que me senti mesmo sem qualquer valor.
E um dia, do nada, apareceu um documento do meu pai, escrito em vida, a doar-me a casa. Esse documento estava em casa de um amigo de infância do meu pai, advogado, que sempre me procurou desde que eu fiz 18 anos. De todas as vezes que foi lá, nunca conseguiu falar comigo. Ela sempre o mandou embora. Depois de eu sair de casa, ela sempre lhe disse que não sabia de mim e ele nunca me conseguiu encontrar. Até que um dia, ao sair do trabalho, ele me apareceu e me disse que a casa era minha e que, se eu quisesse, podia despejar a minha mãe e ir morar para lá.
Aquilo caiu-me como uma bomba. Não sabia bem o que fazer.
Mas por todo o mal que ela me fez, decidi que me ia mudar para lá com o resto da minha família.
E mudámo-nos.
Ela quase não saía do seu escritório, só para ir para o quarto, e nunca falava com ninguém. A minha filha era uma seguidora à altura. Também não falava para ninguém e quando falava para mim era sempre para me fazer sentir mal.
A princípio custava mas fui aprendendo a viver com isso. O meu marido sempre tinha sido contra irmos para lá morar. Mas a casa era boa e dava para todos e já nos dava uma folga no orçamento não ter de pagar a renda.
O miúdo dava-se bem na casa e até gostava da irmã. Não que ela fosse simpática com ele, mas parecia não perceber a hostilidade nos olhos dela. Dizia-me algumas vezes que elas lhe pareciam infelizes. Tinha pena delas. A inocência de uma criança…
A partir daí, vivemos todos juntos, sem qualquer ligação, mas mantendo a devida distância. E a nossa vida foi assim. Não havia laços que nos prendessem porque as duas mulheres da minha vida, a minha mãe e a minha filha, decidiram que eu não servia para elas. Não falávamos, nem sequer nos víamos mas houve uma certa altura da minha vida em que decidi que, apesar de tudo, eu queria ser feliz.
E fui.
E não me importei com as pessoas que não me amaram e pensei naquilo que eu as amei e parece-me que por isso tinha o direito de ser feliz.
Sofri. Sofri muito. Mas decidi dar uma oportunidade à minha vida que agora se revelava. Havia pessoas que gostavam de mim. E essas pessoas mereciam que eu gostasse delas.
....continua...
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