sábado, 26 de abril de 2008

Personagens IV

Pai, quando eu era pequena o que é que achavas que eu ia ser quando crescesse?”
“Gostava que fosses médica, acho eu.”
“Não, pai, o que é que tu ACHAVAS que eu ia ser?”
“Não sei. Talvez escritora. Sempre tiveste jeito com as palavras.”
E assim terminou a última conversa que tive com o meu pai. Ele a morrer por fora com um cancro terminal e eu a morrer por dentro, à beira de uma depressão, com a desconstrução de um amor de 15 anos. Depois disto ele fechou os olhos e adormeceu. Fiquei ali a olhar para ele, palidamente rosado, como um bebé grande.
“Adoro-te, pai…”Disse em jeito de murmúrio. E saí.
À noite, já deitada, ia-me lembrando das imensas conversas que tivemos, eu e o meu pai. Ia-me rindo sozinha só de me lembrar das coisas que ele dizia. Quando me doíam os ossos da magreza extrema a que os últimos tempos me tinham exposto, parava de me rir um pouco e chorava. Depois voltava a rir-me com o meu pai.
Na manhã seguinte, ligaram do hospital. “O seu pai morreu”, disseram.
Para dizer a verdade, naquele momento não me caiu o mundo em cima, como toda a gente tem a mania de dizer. Desconfio que se caísse me esmagava os ossos. Na verdade, só por volta do meio-dia é que me dei conta de que perdera a única pessoa que me amara na vida. Sim, penso que foi por volta dessa hora, mais ou menos. Desatei aos berros e fui para a cozinha partir pratos. Sim, nesse dia fui cliché, já que nos filmes se define mulheres irritadas como mulheres a partir pratos. Parti um pela morte do meu pai, o único homem decente da minha vida; um pelo Paulo, que me trocou pela lambisgóia da rua; um por mim, sem conseguir tomar as rédeas da minha vida…E o resto por todas os obstáculos da vida. Quando na cozinha já não havia nada para partir, sentei-me na cadeira do canto e olhei para a janela durante um tempo. No fundo não estava a olhar para lado nenhum. Estava a olhar para dentro de mim própria. Talvez…
Nesse momento lembrei-me de uma conversa que tive com o meu pai quando tinha 10 anos:
“Pai, e se eu não for ninguém na vida?”
“Vais ser”
“Não, pai, e se eu não for, ainda vais gostar de mim?”
“Tu vais ser alguém.”
“Como é que sabes, pai?”
“Eu sei. ”

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Marcas

Costumo dizer que há duas coisas com que não admito que as pessoas gozem: uma é a minha voz(ou timbre, se quiserem) e outra é o meu sotaque. Talvez porque já fiz as pazes comigo própria, com aquilo que sou, com as minhas marcas pessoais, ou as minhas "impressões digitais", se preferirem... E estes são dois bons exemplos daquilo que me distingue das outras pessoas: Por um lado, porque o timbre que se tem é uma coisa única, há em cada voz uma sonoridade distinta que faz com que uma música soe totalmente diferente cantada por duas vozes diferentes. Porque cada timbre, apesar de ter um corpo(que não é físico mas é perceptível), tem também uma alma: a nossa, o que pomos de nós numa música quando a interpretamos. Por outro lado, há também o meu sotaque, o meu pequeno dialecto, idiolecto até. No meu sotaque carrego o peso das minhas origens, as minhas raízes. No meu sotaque vive a minha terra, o meu B.I. linguístico. Mas porque não influenciamos o meio, o meio é que nos muda a nós, o sotaque sofre, inevitavelmente, flutuações. Mas continua a estar ali, diferente do sotaque do centro e do Sul assim como diferente do do Porto. Porque o meu sotaque é Barcelense. E estas são as minhas marcas, assim como as vejo. E como não sou mais especial do que este ou aquele, toda a gente tem as suas marcas, aquelas coisinhas que não somos só nós que temos mas que são diferentes das outras. Toda a gente deveria aprender a reconhecer as suas marcas e a valorizá-las. São as cores que damos ao mundo.

E pensando nisto, lembro-me do horror que me causou saber que íamos ter um novo acordo ortográfico, que a nossa língua, o português de Portugal, ia perder as suas marcas características. Sim, porque depois deste acordo já não há português de Portugal nem Português do Brasil nem Português de lado nenhum, há simplesmente Português. Pelo bem da globalização. Sim, até era capaz de concordar...É bom sermos reconhecidos no mundo, já que há quem não saiba, por esse mundo fora, reconhecer Portugal num mapa sem dizer que é Espanha...Sim, essas pessoas vão saber falar Português, sabem que se fala no Brasil e tudo, mas muitas acham que em Portugal se fala Espanhol...Falo por experiência...Mas vamos ficar contente por saber que o Português, que também vai ser nosso, igualzinho ao nosso, vai ser falado por esse mundo fora...Aquilo que vamos ter de esquecer é, no fundo, aquilo que nos distinguiu dos outros povos de língua Portuguesa, o nosso legado linguístico, a evolução da nossa língua no nosso território, tudo por um bem maior...Coisa pouca, não acham?:)