domingo, 20 de janeiro de 2008

Personagens- 1

"And I´m divided between Penguins and Cats" Katie Melua, Belfast











Personagens, capítulo 1











"Eu pensava que as coisas iam ser mais fáceis depois de crescer. Que não ia ter amarras, que faria tudo aquilo que me apetecesse; eu julgava que ser adulto era aquilo que me faltava para ser feliz. E enganei-me. Meus amigos, sei que estão surpreendidos por me ouvirem dizer isto mas é v erdade. Enganei-me. Redondamente.





O meu sonho era viver do outro lado do mundo, do outro lado de tudo. Na verdade acho que pensava que o meu sonho era viver longe de tudo aquilo que conhecia. E achava que assim seria feliz.





Se isto era o meu sonho, então deixem que vos diga que o realizei. Agora se me perguntarem se por realizarmos os nossos sonhos somos pessoas mais felizes então...











É difícil. É difícil responder.











Afastei-me de casa aos 18 anos para viver em Nova Iorque. Por um sonho.





Afastei-me de tudo e concentrei-me apenas nesse sonho, na busca incessante e, por vezes, exaustiva da minha felicidade. Desfiz-me das amarras, acabei por me desfazer dos laços...É uma consequência natural...

Dos 18 anos até ontem, o dia em que fiz 30 anos, não voltei a saber dos meus pais. Não sentia necessidade de os procurar, de saber sequer se estavam bem. Andei absorto no meu mundo para lá de tudo, achava que eram eles que me impediam de crescer...De vez em quando sentia uma pontada forte no peito e (como não sou cardíaco) acho que era Saudade...Mas passava. Sempre passou. Era como um mal estar súbito que ia e vinha e que eu podia(pelo menos tentar) controlar.



Durante esses anos andei por aí. Às vezes a trabalhar em restaurantes, outras em bares,supermercados, em todos os sítios onde que me quisessem. Durante esses anos não fiz nada de especial da minha vida. Na verdade eu não tinha mais sonhos para além de sair, de fugir. Era assim que me imaginava sempre. A correr, de um lado para o outro, sem um porto seguro, sem casa, sem amigos, sem ninguém.



A FELICIDADE É PARA QUEM SE BASTA A SI PRÓPRIO



Lembrava-me dessa frase vezes sem conta e sabia que o filósofo, do qual não me lembrava do nome, tinha razão. E era nele que eu buscava a minha razão.



E talvez vocês não me entendam. Talvez não consigam perceber porque razão deixei de ver os meus pais durante 12 anos. Na verdade acho que é fácil de explicar: Nós não escolhemos os nossos pais. Por essa mesma razão não somos obrigados a gostar deles. Não sei se me faço entender mas é pelo mesmo motivo que nem sempre gostamos do nosso nariz. É nosso. Ponto final. Mas se nos perguntarem se o gostaríamos de trocar, muitos de nós diriam que sim.



E eu, se pudesse, tinha trocado de pais(talvez de nariz não, até gosto do meu, ajusta-se ao meu rosto).



E a verdade é que não podia trocar de pais. Troquei de cidade, de país, de vida, mas de pais não podia...



Talvez alguns de vós estejam a pensar que eu não sei o que digo.; que devemos gostar dos nossos pais; que gostariam de ter os vossos pais por perto e não têm, que se foram, que nunca cá estiveram, que é injusto alguém como eu, que sempre os teve, ter fugido para nunca mais os ver...



Talvez...



Talvez seja...



Não sei.



Se me perguntarem se faria o mesmo de novo então eu...





Acho que não...



Acho que...


Não sei...



Olhando para os meus pais assim de longe, da distância de 12 anos, acho que até me fizeram falta. Algumas vezes. Pelo menos algumas. Não me recordo bem de quais, mas acho que em algumas noites, quando me punha a chorar, a pensar no trabalho que tinha acabado de perder, nos amigos que não tinha, na falta de um lugar a que chamar meu...


E neles. Aquelas figuras austeras e carrancudas que sempre me fizeram sentir mais fraco do que aquilo que realmente era. Aqueles de quem eu me escondia no quarto com vergonha de dizer as notas no fim do semestre. Aquelas pessoas que me enterravam numa infância assustadoramente comprida, cheia de exigências e sermões e aulas de catequese.



Não. Pensando bem não sinto a falta disso..



Mas sim, sinto a falta de alguém que me abraçasse e dissesse que estava tudo bem, mesmo quando não estava.


Será que essa pessoa eram eles? Acho que não...Não é deles que sinto falta. ..Sinto falta daquilo que eles nunca foram. Talvez seja isso.



Acho que só vi a minha mãe sorrir duas vezes na vida. E nem sequer me lembro do porquê. Ou então foi só um sonho e a minha mãe nunca sorriu para mim.



Eles não me queriam. Afinal, para quê querer uns pais assim??


Se fosse assim tão fácil...


No outro dia, quando abri a caixa do correio e vi um selo de Portugal, acho que fiquei surpreendido. É que depois de tantos anos sem notícias desse pequeno canto do mundo, acho que até me esqueci de que realmente existia. Preferia pensar na minha praia de Porto Côvo como um sonho; a ilha do Pessegueiro, a música do Rui Veloso da qual ainda me recordava tão bem...Sonhava constantemente com estes lugares e, portanto, não era difícil que me parecesse um sonho...Depois a carta devolveu a todos estes lugares a sua realidade. Aterrei. Depois de 12 anos a flutuar, finalmente aterrei...Foi assustador, como se fosse a minha primeira aterragem, se eu fosse piloto...


Dizia:


Finalmente conseguimos descobrir-te. Não foi fácil. Não sei se te importa mas a tua mãe morreu e o teu pai está muito mal, queria ver-te. Caso consigas, vem a Portugal. A tua casa continua no mesmo sítio.


Tia Adélia.


E caí...Caí de tão alto que a minha cabeça às voltas e voltas continuava a cair sem nunca tocar no chão. A realidade encontrou-me.


Ainda com o cérebro a zumbir subi as escadas do meu apartamento. Deixei-me cair no sofá enquanto tentava assimilar a notícia. Sempre fugi dos meus pais e não queria que me encontrassem, acho que nem para dizer que estavam mortos...Achava que nunca receberia esta notícia...


Senti uma necessidade imensa de voltar a casa. Áquela planície solarenga. Revi o tempo a passar por mim sem nada para me dar. Decidi voltar.


Reuni as coisas mais importantes, objectos adquiridos ao longo dos 12 anos, não muitos. Peguei em tudo e fui directo ao aeroporto.


Nesses 12 anos tinha ganho algum dinheiro, que usei para comprar a passagem.

Portugal. Tudo diferente e tudo igual. As pessoas a correr, como em todo o lado. À toa. Lisboa. Cidade luminosa, afagou-me o rosto habituado ao anonimato com sorrisos. Sorrisos vindos de lado nenhum. As pessoas a passar por mim e a sorrir. O sentimento de pertencer. Parece que estou em casa.

Mas não.

Até ao Alentejo são umas horas de caminho. E à espera, um pai doente, e a memória de uma mãe perdida, uma mãe que eu não quis...Sentimentos estranhos dentro de mim. Misturas de sentimentos. Esboços. Porque na verdade não sei o que sinto.

A tia Adélia com um sorriso choroso para mim. Um abraço que não me lembrava de já ter sentido. A distância que nos faz diferentes. Parece que me mudou. E de repente mudou tudo comigo...

"Filho...

O meu filho

Tenho o meu filho comigo..."

"Pai, eu..."

"Não digas nada. Aceitámos a tua escolha. Só que nunca nos esquecemos de ti..."

"Como é que está, pai?"

"Não vou sobreviver..."

"Não diga isso..."

"Não quero...A tua mãe morreu...O amor da minha vida...morreu...Só queria dizer-te adeus...Acreditas? Fiz-te vir de tão longe porque precisava de te dizer adeus..."

"Pai..."

Fechou os olhos e suspirou. E foi a última vez que vi o meu pai com vida.

continua...




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